Paulo Bonfim e o muro da poesia

Vocações há que escolhem uma senda – ou são por ela escolhidos? – e a percorrem sem variação, durante toda a vida. Não me parece coerência o espírito se confinar em uma única forma de cultura. Talvez por isso, o que sempre admirei em PAULO BOMFIM foi o seu desembaraço nos domínios mais variados. A capacidade que tem de falar com igual propriedade e idêntica sutileza sobre a História de São Paulo, sobre filosofia, sobre fatos curiosos que dariam outra Mil e Uma Noites, melhor traduzidas neste caso por Mil e um Almoços Deliciosos preparados pela Lúcia, naquele paraíso que alguns daqui frequentam com assiduidade.

Domina todos os assuntos e em todos eles a graça de seu estilo, o sabor na escolha das palavras, a candura que emana de um homem incapaz de ver defeitos em qualquer próximo. Mesmo aqueles que nos santificam, por nos atormentarem.

Predestinado à universalidade, provido de talento para exercitar seu espírito em todas as direções, é uma das inteligências mais lúcidas, mais vivas, mais inebriantes dentre as muitas com que fui premiado nestas quase setenta décadas.

Seu sorriso enciclopédico, sua visão tão refinada e seu cavalheirismo suscitam aprovação geral. Sua existência o tornou transparente diante de si mesmo. Pagou tributos por ser quem é. Mas enfrentou o sofrimento com estoicismo poético. Nunca cessou de jorrar essa usina produtora de beleza e lenitivo. “Se a língua cria a realidade e a poesia cria a língua, quem cria a poesia?”[1]PAULO BOMFIM.

É como poeta que o povo o conhece. Domador de palavras, amante da língua, de sua beleza, de sua riqueza, de seu mistério e de seu encanto, da qual poderia dizer: “Ela é meu compromisso, através dela concebo minha realidade e por ela deslizo rumo ao seu horizonte e fundamento, o silêncio do indizível. Ela é minha forma de religiosidade. É, quiçá, também a forma pela qual me perco”[2].

Há uma simbologia evidente na permanência da poesia nos muros de ANCA e CARLINHOS SALEM, decorrido já um ano. Doze meses, trezentos e sessenta e cinco dias resistindo à pichação que enfeia a metrópole. Até a delinquência – sim, pichar é delito! – respeita a poesia. Não conspurcou a “expressão concreta e artística do intelecto humano em língua emocional e rítmica”[3]. PAULO BOMFIM é legítimo herdeiro daqueles heróis que admira e já cantou: os bandeirantes. “O poeta representa a ponta da cunha que a conversação força para dentro do indizível. Os poetas são os nossos bandeirantes, que se expõem, em nosso benefício tanto quanto no seu, ao perigo da aniquilação pelo indizível. Longe de estarem isolados, são, justamente por terem se recolhido, os condutores da conversação”[4].

Os muros servem de proteção e as muralhas habitam o inconsciente coletivo desde sempre. Fala-se em muralhas ciclópicas, edificadas na civilização micênica, obra dos ciclopes, gigantes que deram a Zeus os raios de que se serviu para derrubar Cronos, seu pai, na origem da era olimpiana. Os muros de ANCA e CARLOS SALEM tornaram-se também ciclópicos, pois eternizam a poesia de um gigante, o poeta PAULO BOMFIM. Gigante no seu talento e erudição, mas gigante ainda maior pelo seu enorme coração, onde cabemos todos nós e quem mais vier.


[1] GUSTAVO BERNARDO, Prefácio a Língua e Realidade, de VILÉM FLUSSER, 3ª ed., São Paulo, Annablume, 2007, p.9.

[2] VILÉM FLUSSER, op.cit., p.13.

[3][3] Definição de poesia da Enciclopédia Britânica, citada por VILÉM FLUSSER na obra citada, p.181.

[4] VILÉM FLUSSER, op.cit., idem, p.187.

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