Meninos do tráfico

O espetáculo da Cracolândia é um testemunho aterrador de nossa falência moral. Que sociedade é esta que dorme tranquila e convive com essa indigência intolerável? A Folha de 25.12.2011 trouxe no caderno “Aliás” uma página terrível: “Contra a recusa do nosso olhar”. Texto e fotos de Zarella Neto, que fotografou as vítimas do crack na mais populosa capital da América do Sul. É um tapa no rosto de quem tem brio. E a coisa não é nova.

O livro “Falcão: Meninos do Tráfico”, de MV Bill e Celso Athayde mostra o destino comum dessas crianças que primeiro são induzidas ao uso, depois se viciam, depois traficam e em seguida morrem. Em “Quero meu filho de volta”, Celso Athayde relata dois velórios: o de um menino do tráfico e o de um policial jovem. Ambos mortos pela mesma causa. O vício, que sustenta o tráfico. Será que o usuário de um “baseadinho” sabe que ele se torna cúmplice da morte de milhares de jovens brasileiros a cada ano?

Nas várias entrevistas transcritas pelos autores, um padrão se constata: a ausência do pai e a idolatria da mãe. Se o pai ou padrasto é citado, quase sempre é alcoólatra, drogado ou traficante. Obriga o menino a fazer os “serviços” de apoio ao tráfico: observar armado a entrada da favela, alertar para a chegada da polícia, acusar a vinda dos compradores de droga, enrolar os papeizinhos contendo o pó. Os amigos da comunidade são os parceiros, a única instituição social citada pelos garotos recrutados.

Numa das entrevistas, o entrevistador indaga: “Você já matou alguém?”. A resposta foi: “Não! Nunca matei alguém que não merecesse!”. Merece ser morto o X-9, gíria que identifica o delator. Também não ingressa nessa conta o membro de comunidade rival, o policial ou jornalista. Ou qualquer personagem que venha atrapalhar os negócios do tráfico. A noção de direito dessa juventude se faz a partir da lógica do “direito punitivo”.

Essa a Justiça que ela conhece. A única a mostrar a sua face à infância esquecida, totalmente abandonada pelo Estado e entregue à sua própria sorte. Sorte madrasta, pois o jovem do tráfico morre cada vez mais cedo e é substituído de imediato, pois há uma fila imensa de crianças à espera de uma oportunidade de ganhar dinheiro sem enfrentar a crueldade que o sistema “civilizado” oferece a elas.