A lei da “ficha limpa” e as eleições municipais

A lei da “ficha limpa”, que nasceu da iniciativa popular, é fruto de um paradoxo. A mesma sociedade que clamou pela sua aprovação constantemente elege pessoas que já demonstraram, anteriormente, ter pouco apreço pelo interesse público. Quantos não são os exemplos de políticos condenados, ou que renunciaram ao mandato para evitar a cassação, que voltam a seus postos, eleitos pela vontade popular. Ou o povo tem memória curta, ou se ligam muito mais na pessoa do candidato que em suas qualidades éticas, morais. O certo é que são inúmeros os exemplos dessa contradição.

A lei está aí, aprovada pelo Congresso Nacional, e considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Embora nos pareça que representa um atentado contra o princípio constitucional da presunção de inocência. A nossa Constituição estabelece que até a condenação definitiva (isto é, aquela da qual não cabe mais qualquer recurso) a pessoa deve ser considerada inocente. Porém, assim não entendeu a Suprema Corte, que deu pela constitucionalidade da lei.

A imprensa noticia, agora, que o Ministério Público vai elaborar uma lista daqueles que se enquadram no conceito de “ficha suja”, a fim de possibilitar aos Promotores de Justiça, em suas respectivas comarcas, impugnar suas candidaturas.

No entanto, a questão não é tão simples como parece à primeira vista. O texto da lei promulgada não consagra a simples condenação por órgão colegiado como geradora da inelegibilidade.

O art. 1º da lei complementar n. 64/90, com a redação que lhe deu a lei complementar nº 135/10  (conhecida como lei da “ficha limpa”), declara inelegíveis para qualquer cargo, em seu inciso “l”, “os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena”.

Assim, não basta a condenação. É preciso que a decisão condenatória seja expressa, em primeiro lugar, em suspender os direitos políticos. É preciso, também, que essa condenação se relacione com ato doloso de improbidade administrativa, não abrangendo o ato culposo de improbidade administrativa. É preciso, ainda, que desse ato doloso de improbidade administrativa tenha decorrido lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.

O ato de improbidade administrativa pode ser doloso ou culposo. Doloso é o ato em que o agente atua com consciência e vontade. Ou seja, age de forma consciente, sabendo o que está fazendo, e querendo agir desse modo, violando a moralidade administrativa. Culposo é o ato em que o agente atua descuidadamente, sem as cautelas que deveria ter tomado nas circunstâncias. Não tem consciência da ilegalidade, embora pudesse tê-la.

Saliente-se que muitas vezes, embora doloso, o ato de improbidade administrativa não causa lesão ao patrimônio público. Mencione-se, no particular, entendimento, com o qual não concordo, que essa lesão pode ser jurídica, sem conteúdo econômico, decorrente da própria improbidade. A expressão utilizada pelo legislador – patrimônio – nos parece indicar, claramente, uma lesão de conteúdo econômico. Patrimônio, consoante lição de De Plácido e Silva, é “o conjunto de bens, de direitos e obrigações, aplicáveis economicamente, isto é, em dinheiro, pertencente a uma pessoa, natural ou jurídica, e constituindo uma universalidade (Vocabulário Jurídico, Editora Forense, p. 594). Esse o sentido da expressão no texto legal.

A decisão condenatória, por último, deverá ser expressa em reconhecer o enriquecimento ilícito do agente público. Em outras palavras, que ele se locupletou indevidamente com o ato de improbidade praticado.

Faltando qualquer dessas condições não se pode falar na incidência deste art. 1º, I, letra “l”. Não se pode considerar o político como inelegível, ou “ficha suja”.

Daí a preocupação. Será que naquele “cadastro” de “fichas sujas”, a ser elaborado pelo Ministério Público, serão observados todos esses requisitos? Ou será que, e nos parece mais provável, se levará em conta apenas e tão somente a condenação por órgão colegiado?

Lembro-me, no particular, de caso julgado na Primeira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, e perfeitamente adequado ao tema. Numa pequena cidade do interior, o Prefeito recebeu verba do Estado para construir uma ponte. Sobrou dinheiro. Como o município foi assolado por forte chuva, outra ponte ruiu. O Prefeito, então, lançou mão dessa sobra e construiu a nova ponte. No entanto, por falta de conhecimento jurídico, numa Prefeitura com pouquíssima estrutura, e sendo ele uma pessoa de poucas letras, não providenciou a necessária licitação. Foi, então, denunciado pelo Ministério Público, que ingressou com ação civil pública, julgada procedente em primeiro grau. Foi considerado administrador ímprobo. Contra meu voto, a decisão condenatória foi mantida em grau de recurso, ao entendimento que houvera descumprimento de norma legal, ou seja, a não realização de procedimento licitatório ou ausência de justificativa para a dispensa. O que, em tese, configura ato de improbidade administrativa. Recusei-me a manter a condenação atento às circunstâncias peculiares do caso. Inexistiu má-fé do Prefeito, sobressaindo-se sua preocupação com os seus munícipes, necessitados da nova ponte. A par da pouquíssima instrução do Prefeito, e da total falta de estrutura jurídica de sua Prefeitura, destacou-se a honestidade. Ao invés de, usando de subterfúgios e fraudes, embolsar a sobra, usou-a em benefício da população.

Pois bem, será que esse Prefeito não será arrolado como “ficha suja”, e objeto de impugnação do Promotor de Justiça local, caso deseje ser candidato novamente? Porque foi condenado, por decisão colegiada, por ato de improbidade administrativa.

Se o for, será que terá condições de lutar juridicamente contra essa impugnação?

Como se percebe, o tema é tormentoso e trará, sem dúvida, inúmeras demandas a serem dirimidas pelo Tribunal Regional Eleitoral, aumentando, e muito, a carga de trabalho, que já seria imensa, nas eleições municipais que se avizinham.
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1 comentário

  1. Miriam Deborah Barreto

    Artigo excelente! Nós, brasileiros, estamos engatinhando, mas acredito que essa Lei já é meio caminho andado. O Legislativo fez a sua parte. Agora, vem a parte mais difícil: conscientizar os eleitores de que é necessário conhecer bem o seu candidato antes de dar um crédito a ele nas urnas. Infelizmente, vai sobrar serviço para o Judiciário.

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